segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ronaldo Bicalho: com as regras para exploração do pré-sal, "o que está sendo discutido é o país que nós queremos e o que estamos dispostos a fazer para construí-lo."

Segue o artigo publicado por Ronaldo Bicalho em seu blog.

Segundo seu currículo no Sistema Lattes, formado em Engenharia Química pela UFRJ, o autor é pesquisador e professor da mesma institução, onde obteve também o grau de mestre e doutor em Planejamento Energético e Economia da Industria e da Tecnologia, respectivamente.

Postado por Ronaldo Bicalho em 19 outubro 2009 às 11:00

."o cerne da discussão é justamente a ampliação do controle estatal na exploração das riquezas do pré-sal, de forma a auferir o máximo de benefícios dessa exploração, sob uma ótica estratégica de longo prazo que transcende os limites da indústria petroleira. De fato, o que se está discutindo é um projeto de desenvolvimento do país calcado no grande potencial de riqueza representado pelo pré-sal."

A discussão sobre as propostas do Governo envolvendo a regulamentação da exploração do pré-sal tem sido acalorada. Considerando que o tema é complexo, muitas vezes o calor da disputa gera argumentos que contribuem muito mais para dificultar do que para facilitar a compreensão do que está sendo discutido.

Há uma passagem no clássico de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, em que a personagem principal pergunta ao gato qual o caminho que ela deveria tomar e ele responde: “Isso depende muito de para onde você quer ir”.

A singela resposta do gato à Alice pode ser um bom conselho para quem deseja encontrar o fio da meada que o ajude a compreender as escolhas que estão sendo colocadas na mesa na discussão sobre o pré-sal.
Em um folder produzido pela Petrobras, a justificativa para a adoção pelo Governo brasileiro do regime de partilha é a seguinte:

“Com o regime de partilha, o governo pretende obter maior controle da exploração dessa riqueza e fazer com que os recursos obtidos sejam revertidos de maneira mais equânime para a sociedade brasileira. Portanto, esse modelo é mais apropriado ao contexto atual e ao desenvolvimento social, econômico e ambiental do País.”

A palavra-chave desse parágrafo é controle, pois é ela que nos ajuda a entender mais claramente a proposta do Governo. Na verdade, é justamente a ampliação do controle do Estado sobre a exploração das riquezas presentes no pré-sal que estrutura essa proposta.

Em função disso, a principal questão é entender qual é a natureza desse controle e quem irá exercê-lo.

Aqui, não se trata apenas de ampliar a participação do Estado na renda petrolífera, mas de ampliar o controle do Estado sobre o processo de geração dessa renda. Isto implica em aumentar o controle estatal, não só sobre todas as etapas da produção do petróleo, mas também sobre o destino final dado a este petróleo e sobre todas as articulações do setor petrolífero com os outros setores industriais e de serviços.

Nesse sentido, a questão fundamental não é simplesmente aumentar os benefícios advindos da renda petrolífera per se, mas maximizar o conjunto de benefícios associado a toda a cadeia petrolífera, incluídos aqueles relacionados à criação de um dinamismo industrial calcado na internalização da produção da chamada indústria parapetrolífera.

O controle exigido para se alcançar essa vasta gama de benefícios envolve um conjunto de mecanismos que possibilite a gestão estratégica de um conjunto de variáveis-chave que inclui: o conhecimento geológico, a capacitação tecnológica na produção em águas profundas, a escolha dos fornecedores, o ritmo de exploração dos recursos e o destino dado à produção.

Nesse contexto, o conflito aparente entre os objetivos de se deter um maior controle e de se obter uma renda maior pelo Estado é resolvido pela introdução de uma visão estratégica acerca da exploração da riqueza do pré-sal. Nesse caso, o importante não é alcançar a maior parcela de renda no curto prazo e, em função disso, sacrificar a parcela necessária do controle para atingir tal objetivo; mas, implementar um controle estratégico da exploração que permita auferir o máximo de benefícios durante todo o tempo em que durar essa exploração.

Portanto, trata-se de controlar aspectos fundamentais da exploração do pré-sal que permitam gerir esse processo sob uma perspectiva estratégica de longo prazo, que, no caso específico, envolve um tempo que abarca distintas gerações de brasileiros. Portanto, estamos falando de escolhas mais do que inter-temporais, estamos falando de escolhas inter-geracionais.

Sob essa visão, o maior controle não implica na redução dos benefícios obtidos pelo Estado; pelo contrário, é justamente o maior controle por parte do Estado que viabiliza a maior obtenção desses benefícios no longo prazo. Em outras palavras, trata-se de se contrapor a uma visão de curto prazo, que privilegia a maior obtenção de renda hoje, uma visão de longo prazo que, mesmo sacrificando ganhos aparentes no presente, possibilite auferir de forma sustentável ganhos mais significativos no futuro.

Essa concepção estratégica, de longo prazo, marcada pela busca da ampliação do controle do Estado, se manifesta em vários pontos do conjunto de projetos de lei enviado ao Congresso pelo Executivo brasileiro.

Vejamos os mais importantes:

A mudança do regime de concessão para partilha.

No regime de concessão o controle da produção e do petróleo extraído pertence à empresa que detém a concessão. No caso do regime de partilha, esse controle e essa propriedade passam a ter uma interveniência muito maior do Estado.

No modelo proposto pelo Governo, a União participará diretamente das decisões de cada projeto de exploração e terá a propriedade de parte significativa do petróleo produzido.

Essa participação governamental se dará diretamente no âmbito do Comitê Operacional específico a cada projeto. Caberá a esse comitê administrar o consórcio que detém o direito de explorar cada jazida; definindo os planos de exploração e de avaliação das descobertas; declarando a comercialidade de cada jazida e indicando o plano de desenvolvimento; e definindo os programas anuais de trabalho e produção, os termos de unitização, etc.

O controle dos Comitês Operacionais ficará a cargo do Governo, que indicará a metade dos seus membros e mais o seu presidente, tendo direito a um voto de qualidade e poder de veto nas decisões.

Portanto, o controle do Estado sobre a produção proposto pelo Governo se dá no lócus central das decisões; ou seja, no Comitê Operacional. Logo, a mudança do regime não visa apenas uma maior participação do Estado na renda petrolífera em função da redução do risco exploratório, mas controlar as decisões de produção que irão gerar essa renda.

Por isso, a afirmação de que o regime de concessão, com pequenas alterações, poderia alcançar os mesmos objetivos carece de fundamentação. Se a questão se resumisse a parcela da renda apropriada pelo Estado, essa afirmação mereceria alguma consideração; contudo, se o objetivo pretendido é o controle do processo de geração dessa renda, essa afirmação não se sustenta e, mais do que isso, contribui para esconder a questão central que é justamente aquela referente a quem controla esse processo.

A Petrobras como única operadora do pré-sal


Como operadora, a Petrobras irá conduzir as atividades de exploração e produção, providenciando os recursos humanos e materiais para a execução das atividades. Além de ter acesso à informação estratégica, a Petrobras terá controle sobre a produção e os custos e sobre o desenvolvimento da tecnologia e das relações com os fornecedores de máquinas, equipamentos e serviços.

Dessa forma, todo o processo de aquisição de conhecimento geológico, aprendizagem tecnológica e industrial envolvendo o pré-sal passa a ser controlado pela Petrobras.

Nesse sentido, a participação da Petrobras de 30 % em todos os consórcios surge como uma contrapartida da empresa, em termos do seu comprometimento com as atividades de exploração e produção, ao exercício da exclusividade na função de operadora no pré-sal.

A questão-chave aqui para o exercício do controle do Estado sobre o pré-sal não são os 30 %, mas a exclusividade da Petrobras como operadora nesta área de exploração.

A Petro-sal


Diferentemente do que imaginam alguns analistas, a Petro-sal joga um papel-chave nos mecanismos de controle do Estado proposto pelo Governo.

A Petro-sal irá representar os interesses da união nos contratos de partilha de produção e estará presente nos Comitês Operacionais que definirão as atividades dos consórcios, com direito a voto de qualidade e poder de veto nas decisões; estando representada nesses comitês através de metade dos seus membros mais o presidente.

Entre suas principais atribuições estarão a representação dos interesses da união nos contratos de partilha de produção, o monitoramento e a auditagem dos custos e investimentos nos contratos de partilha e a gestão dos contratos para a comercialização do petróleo da União.

Dessa forma, a natureza do controle do Estado muda radicalmente com a criação da Petro-sal. No regime anterior de monopólio, a União transferia para a Petrobras o exercício do controle da produção, enquanto que no regime de concessão, aplicado a partir de 1998, a União transferia esse controle para as empresas que detinham as concessões obtidas nos leilões.

De agora em diante, o Estado exerce o seu controle diretamente no lócus da decisão de produção que é o Comitê operador de cada jazida. Dessa maneira, o Estado pretende ampliar o seu controle direto sobre o conjunto de empresas que exploram o pré-sal; inclusive sobre a própria Petrobras.

A cessão onerosa e a capitalização da Petrobras


A cessão onerosa e a capitalização da Petrobras devem ser analisadas em conjunto. E aqui não se trata apenas de colocar a disposição da Petrobras um volume importante (5 bilhões de barris) de reservas, de baixo risco e produtividade elevada, que pertence à União, mas, de, mediante o processo de capitalização, aumentar a participação da União na composição do capital da Petrobras.

Assim, o Estado brasileiro, por um lado, reforça a posição financeira da sua própria empresa para fazer face aos investimentos necessários à exploração do pré-sal, e, por outro, aumenta a sua participação acionária nesta mesma empresa, canalizando a maior parte dos ganhos possíveis para os cofres federais.

Assim, mais uma vez, a questão da ampliação do controle, como forma de viabilizar o acesso a ampla gama de benefícios advindos da exploração do pré-sal, aparece como o elemento estruturante da proposta do Governo brasileiro.

A mudança do contexto


A sustentação da proposta do Governo de maior controle do Estado sobre a indústria de petróleo no Brasil se baseia na consideração de que houve uma mudança radical no contexto desta indústria no país.

Assim, em contraste com a situação na qual atual legislação foi criada, nos anos noventa, em que o Brasil e a Petrobras estavam inseridos em um contexto de instabilidade econômica, de preço baixo de petróleo (Us$ 19 o barril), de dependência do óleo importado e de exploração com elevados riscos, hoje, o contexto é de estabilidade econômica, de preços de petróleo muito mais altos, de auto-suficiência, e de exploração do pré-sal com riscos exploratórios muito mais baixos.

Por outro lado, as condições de tranqüilidade no mercado de petróleo da década passada foram substituídas por tensões cada vez maiores neste mercado que se traduziram na elevação dos preços desse energético e em disputas geopolíticas cada vez mais acirradas.

Assim, a afirmação de que o petróleo seria uma mercadoria como outra qualquer, tão comum nos anos noventa, e que, em parte, sustentava a abertura dos mercados, hoje, diante dos fatos objetivos, encontra muitas dificuldades de ser sustentada.

Essa mudança na percepção do papel do petróleo, na qual ele deixa de ser uma simples commodity para se tornar um insumo energético estratégico, contribui para uma construção institucional que contempla a ampliação do papel do Estado nessa indústria.

Portanto, a proposta de mudança do marco institucional para a província do pré-sal ultrapassa a questão específica do reduzido risco exploratório. Na verdade, a mudança contempla uma visão distinta do papel estratégico a ser desempenhado pelo setor petrolífero brasileiro a partir do pré-sal; tanto no que concerne a uma nova inserção internacional do país, quanto às próprias condições objetivas de sustentação dessa nova inserção.

Nesse sentido, o cerne da discussão é justamente a ampliação do controle estatal na exploração das riquezas do pré-sal, de forma a auferir o máximo de benefícios dessa exploração, sob uma ótica estratégica de longo prazo que transcende os limites da indústria petroleira.

De fato, o que se está discutindo é um projeto de desenvolvimento do país calcado no grande
potencial de riqueza representado pelo pré-sal.

A proposta do Governo traz embutida uma visão de desenvolvimento e do papel estratégico do Estado neste desenvolvimento. Portanto, não diz respeito, simplesmente, a uma discussão sobre vantagens e desvantagens dos regimes de exploração - concessão versus partilha -, das vantagens e desvantagens da participação da Petrobras em todos os consórcios, das vantagens e desvantagens da cessão onerosa e da capitalização da Petrobras, das vantagens e desvantagens da criação de uma nova estatal e, assim por diante. Na proposta governamental há um eixo central que estrutura o conjunto de projetos de lei e é este eixo central que deve ser discutido. Pode-se concordar com ele, ou não. Porém, fatiar a discussão e tentar levar o debate de forma fragmentada não ajuda ao cidadão a compreender o que está sendo, de fato, discutido.

O que está sendo discutido é o controle do Estado brasileiro sobre a exploração das nossas riquezas. O que está sendo discutido é o nível desse controle, os seus custos e os seus benefícios. O que está sendo discutido é qual o nível de soberania que queremos e podemos exercer sobre as nossas riquezas. O que está sendo discutido é o país que nós queremos e o que estamos dispostos a fazer para construí-lo.

Em suma, meus amigos, o que está sendo discutido é o lugar onde se quer chegar e o caminho que se tem que tomar para alcançá-lo. Por isso, seguindo o conselho do gato à Alice, discutir o caminho sem saber onde se quer chegar não tem nenhuma serventia. A não ser que não se saiba onde se quer chegar ou, pior, se saiba, mas não se queira ou não se possa dizê-lo claramente na discussão.

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